CONTRA O ATO MÉDICO E A FAVOR DA MULTIPLICIDADE DE PRÁTICAS E SABERES NA SAÚDE
Se a questão do Ato Médico fosse simplesmente uma discussão produtiva sobre a atuação (o agir) em saúde em prol da sociedade, seria muito mais produtiva.
Lembramos que até a década de 1970 havia hegemonia das práticas médicas curativas, com custos acentuados da atenção médica, que eram estratégias únicas para produzir mudança das condições de saúde das pessoas. Na tentativa de ultrapassar as fragmentadas políticas do setor saúde, de afastar-se do modelo clássico da história natural da doença e de propor linhas metodológicas de pesquisas na saúde, surgiu o movimento denominado Promoção da Saúde, que implica numa combinação de estratégias, desde ações do Estado (políticas públicas saudáveis), do sistema de saúde (reorientação do sistema de saúde), da comunidade (reforço da ação comunitária), dos indivíduos (desenvolvimento de habilidades pessoais) e de parcerias intersetoriais, com a ideia de responsabilização múltipla no processo saúde-doença-cuidado e de seus determinantes.
A Saúde Coletiva e a Promoção da Saúde, com seus conjuntos de práticas sociais pertencentes ao campo da saúde, estabeleceram uma ruptura com as concepções hegemônicas da medicina que levavam a articulações simplificadas entre causa e efeito, desconsiderando a dimensão social e histórica do processo saúde-doença.
Assim sendo, o Ato Médico pode ser interpretado como uma tentativa de explicação unicausal para a complexidade do processo saúde-doença-cuidado. Em outras palavras, visa impedir as atividades criadoras e os avanços do campo da Saúde Coletiva, quando entravam as ações de saúde nas práticas médicas estabelecidas, cristalizadas, e nos direitos corporativos, através do poder instituído e engessado na classe médica.
O curso de Biomedicina surgiu no Brasil em 1966, no momento em que se operava um movimento de profissionais da saúde, de pesquisadores e da sociedade civil para a integração das ações de saúde como forma de responder efetivamente às demandas apresentadas pela população. Nessa época, a estruturação das práticas sanitárias da saúde pública não conseguia cobrir a complexidade e a amplitude exigidas pelo contexto social. A Saúde Coletiva estruturou-se, então, através de questionamentos quanto às bases teóricas e práticas da saúde pública, e tinha como objetivo estabelecer concepções sobre as condições de vida e saúde. Recordemos que, absolutamente voltado a esse contexto, o objetivo inicial do curso era formar profissionais biomédicos para atuarem como docentes especializados nas disciplinas básicas das escolas de medicina e de odontologia, bem como de pesquisadores científicos nas áreas de ciências básicas, e com conhecimentos suficientes para auxiliarem pesquisas nas áreas de ciências aplicadas.
Desde o início da atuação profissional, grande parte dos biomédicos teve (e tem) a oportunidade de trabalhar com médicos que de fato estão interessados na relação entre “profissional de saúde-paciente”. Essa relação é construída a partir de interações durante consultas, exames, retornos, monitoramento do tratamento e demais oportunidades de contato, envolvendo não só a atuação da figura do profissional médico, mas também de biomédicos, enfermeiros, fisioterapeutas, entre outros.
Trabalhamos frequentemente com médicos que despessoalizam os seus saberes porque a possibilidade de criação de outros modos de trabalhar na saúde se faz necessário em prol da prática humanizada. A humanização é construída não por uma pessoa ou grupo isolado, mas de forma coletiva e compartilhada. É produzir novos modos de cuidar e novas formas de organizar o trabalho. São inúmeras as oportunidades de discussão de resultados de exames laboratoriais de pacientes com vários médicos especialistas, visando auxiliar na realização de um diagnóstico em pacientes sintomáticos (exames diagnósticos) ou identificação de doenças ocultas em pacientes assintomáticos (rastreamento).
O trabalho em equipe é uma excelente estratégia para enfrentar o intenso processo de especialização na área da saúde. O trabalho em equipe multiprofissional permite desconstruir verdades em relação aos nossos saberes e produzir novos mundos juntos dos usuários. É sair do plano individualizado de uma identidade profissional e se lançar aos desafios e riscos inerentes à preservação da saúde e bem-estar dos pacientes.
Nós biomédicos, bacharéis do saber em saúde, docentes, pesquisadores, coordenadores de curso, mestres, doutores, nunca precisamos afirmar nossa “identidade” profissional ou precisamos esfregar o nosso CRBM na cara de alguém por conta do excesso de demanda de trabalho ou até por autoafirmação. A propósito, repudiamos veementemente a expressão “não-médicos” a toda classe de profissionais da saúde que não se graduaram em medicina. Além de ser depreciativa e segregadora, mostra uma certa ignorância por parte daqueles que a utilizam. Somos biomédicos com orgulho e temos formação na área de saúde que nos permite uma atuação multiprofissional e interdisciplinar de forma autônoma. O maior aprendizado ao longo de nossa trajetória profissional é o da não necessidade de uma “postura” totalizante, fragmentária e que incite lutas por regulamentações desnecessárias, tentando anular a autonomia de profissionais da saúde, como a que requer o Ato Médico.
Um dos grandes desafios frente às redes de cuidado é o trabalho em equipe, não só porque temos que nos deparar com o sofrimento dos usuários, mas com as frequentes “exclusões” por parte de alguns grupos profissionais. Na rotina da área de saúde, na parceria entre trabalhadores de saúde e pacientes, todos somos gestores de uma vida em processo, de um sintoma que se concretiza e exige ações. Sendo assim, construir um diagnóstico frente aos sintomas é uma tarefa coletiva. Cuidar não significa apenas classificar, aplicar técnicas terapêuticas ou fazer procedimentos. Podemos, ao invés disso, fazer do procedimento um ato coletivo; transformá-lo em ato (o agir); um ato que na transversalidade de saberes na área da saúde pode nos fazer escutar o paciente para além de seus sintomas e nos auxiliar a diagnosticar, orientando trabalhadores e usuários em formas de como lidar com as doenças. Mas, fundamentalmente, o diagnóstico não é a certeza da sabedoria do médico ou de qualquer outro profissional e por isso ele deve ser compartilhado, e não privatizado como institui o Ato Médico. Podemos, então, dedicar atenção à produção do agir em saúde.
Assim, o Ato Médico supostamente daria conta de assegurar a uma parcela da classe médica a sua própria existência, é afirmar o poder pela força, é negar o coletivo como fonte de produção da vida, do trabalho, da saúde, é girar em torno de um falso problema.
Nós, biomédicos, somos contra o Ato Médico e a favor da multiplicidade de práticas e saberes na saúde.
Dra. Sandra Heloísa Nunes Messias
Conselheira do CFBM e do CRBM1