Notícias Farmácias como “hubs de saúde”? O que os dados e a realidade mostram

13 de agosto de 2025

Enquanto o varejo farmacêutico defende ampliar o acesso à saúde por meio de atendimentos e exames em farmácias, a experiência internacional, a legislação brasileira e os números da Estratégia de Saúde da Família indicam limites que precisam ser considerados

Wilson Shcolnik*

 

Enquanto o varejo farmacêutico defende ampliar o acesso à saúde por meio de atendimentos e exames em farmácias, a experiência internacional, a legislação brasileira e os números da Estratégia de Saúde da Família indicam limites que precisam ser considerados.

Nos últimos anos, grandes redes farmacêuticas têm defendido a ideia de que as farmácias devem se transformar em “hubs de saúde”, oferecendo atendimentos médicos, exames rápidos e até consultas por telemedicina, tudo ancorado na promessa de mais acesso e redução de custos para o sistema de saúde. Essa visão, porém, contrasta com dados concretos sobre o que realmente amplia o acesso, como a Estratégia de Saúde da Família (ESF), e também com experiências internacionais que não entregaram os resultados prometidos – como o caso da Walgreens, nos Estados Unidos.

A Estratégia de Saúde da Família, principal modelo de Atenção Primária à Saúde (SAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS), existe desde 1994 e, desde então, vem crescendo de forma consistente. Em 2006, cobria cerca de 45% da população brasileira; em 2016, essa cobertura chegou a 64%, com um aumento médio anual de 8,4%. Segundo o Ministério da Saúde (MS), hoje mais de dois terços da população contam com equipes multiprofissionais de atenção básica, que são o principal canal de acesso da maioria dos brasileiros aos serviços de saúde. A ESF tem um histórico comprovado de redução de internações desnecessárias, melhora de indicadores de saúde e custo-benefício muito superior a modelos fragmentados.

Enquanto isso, a aposta de redes privadas em transformar farmácias em clínicas esbarra em lições reais de mercado. Nos Estados Unidos, a Walgreens, uma das maiores redes farmacêuticas do mundo, anunciou em 2024 o fechamento de 1.200 lojas e o fim de seu projeto de clínicas VillageMD, que atendiam pacientes dentro das farmácias. Entre os motivos, a empresa acumulou prejuízos bilionários – só em 2023, foram mais de 1,7 bilhão de dólares de perdas operacionais. Além disso, parceiros como a Advocate Health Care também encerraram dezenas de clínicas dentro das farmácias por falta de viabilidade econômica. O caso evidencia que, mesmo em um país com forte cultura de varejo e menor regulação, o modelo não se sustentou financeiramente nem gerou os resultados esperados.

Outro ponto que costuma embasar o discurso de expansão é a suposta rentabilidade e economia gerada para o sistema de saúde. No entanto, não há estudos independentes ou dados oficiais que comprovem que oferecer consultas ou exames em farmácias resulte em redução de custos globais. Nenhuma análise robusta publicada em periódicos científicos ou órgãos de saúde sustenta essas projeções – trata-se , portanto, de uma narrativa mercadológica que carece de evidências.

No Brasil, há ainda uma barreira legal importante. A Lei nº 5.991/73, o Decreto nº 20.931/32 e resoluções do Conselho Federal de Medicina deixam claro que farmácias não podem funcionar como locais de prestação de serviços médicos, o que inclui a realização de consultas de telemedicina dentro desses estabelecimentos. Recentemente, durante a tramitação da Lei que regulamentou a telemedicina no país, o congresso nacional manteve a vedação para que farmácias atuem como intermediárias para consultas virtuais. Isso reforça o entendimento de que consultas devem acontecer em ambientes clínicos adequados e fiscalizados.

Além disso, a suposta oferta de exames laboratoriais rápidos em farmácias esbarra em outro problema: a baixa adesão dos estabelecimentos aos programas de Controle de Qualidade (CQ), como preconizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Sem a adesão a protocolos rigorosos de monitoramento, os testes rápidos – como glicemia, colesterol e detecção de doenças infecciosas – podem apresentar resultados imprecisos, colocando em risco a segurança do paciente. Diversos levantamentos de entidades do setor apontam que muitos estabelecimentos não seguem padrões mínimos exigidos para garantir confiabilidade equivalente à encontrada em exames realizados em laboratórios clínicos, onde encontramos ambientes controlados, pessoal capacitado e respeito a boas práticas laboratoriais.

É difícil acreditar na promessa de oferta de saúde em estabelecimentos farmacêuticos quando, em uma visita rápida, constata-se a venda de chocolates, biscoitos e, pasmem, até rações para animais. Não por acaso, tramita no congresso o Projeto de Lei 3307/2025 que propõe alterar a Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, para incluir o parágrafo que limita a comercialização, em farmácias e drogarias, a produtos estritamente vinculados à saúde, higiene e diagnóstico médico ou terapêutico.

Diante desse cenário, fica claro que a narrativa de transformar farmácias em “hubs de saúde” não se sustenta nem do ponto de vista econômico, como mostra o caso Walgreens, nem do ponto de vista regulatório e técnico, considerando a legislação e as falhas em controle de qualidade. Enquanto isso, a Estratégia de Saúde da Família – modelo consolidado, gratuito, multiprofissional e com histórico de resultados – segue sendo a principal via de acesso da população à Atenção Primária, que é justamente onde se resolvem mais de 80% dos problemas de saúde.

É necessário, portanto, olhar para os dados concretos e não apenas para discursos de mercado: o fortalecimento do SUS, da SAPS e da ESF é o caminho real para ampliar o acesso, garantir qualidade e reduzir custos para toda a sociedade. Mais do que novas vitrines, o Brasil precisa de saúde pública estruturada, de base comunitária e de resultados comprovados.

*Wilson Shcolnik é Patologista clínico, diretor de Relações Institucionais da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e membro da Comissão de Segurança do Paciente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Fonte: Saúde Business / Mercado da Saúde – 11 de agosto, 2025

https://www.saudebusiness.com/mercado-da-saude/farmacias-como-hubs-de-saude-o-que-os-dados-e-a-realidade-mostram/

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